sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

História transcultural recebida de um missionário conhecido nosso, Curt Kirsh, que trabalha entre a etnia Ianomami em Roraima:



O “XÔKO” NÃO PODE PARAR!
Quem bancou o pato foi a cutia. Eu explico!
Índio, como todo bom brasileiro, também gosta de “xoká póla” (jogar bola)! Ainda não são exímios jogadores, pois o esporte foi introduzido há pouco tempo. Aqui na aldeia de Halikato-U até então, o único esporte praticado entre eles era flecha ao alvo. Um mamão verde era arremessado alguns metros à frente de um grupo de pessoas. Em fração de segundos os arcos eram retesados e logo em seguida ouvia-se os zumbidos das flechas chispando rumo ao alvo. Era comum vê-los indo e voltando na enorme clareira da pista de pouso, praticando sua pontaria em mamões. Dentro de pouco tempo o mamão precisava ser substituído por outro, pois só restavam pedaços, tal era a pontaria.
Ao passar dos anos o futebol, paixão nacional, foi introduzido também entre os halikatothelis. As bolas começaram a tomar o lugar das flechas e os tiros certeiros deram lugar a pés inexperientes e rudes. Hoje em dia as bolas já duram um pouco mais, mas não era assim no começo. Espinhos e unhas são as razões principais delas não terem uma durabilidade maior.
Em uma visita minha à aldeia uma bola furou, ou melhor, foi furada propositalmente por um indígena. Foi um acontecimento inédito. Vou descrevê-lo, pois nunca tinha visto, até então, uma bola sendo furada desse jeito. Xina, depois de ter tomado algumas cuias de caxiri (bebida fermentada à base de mandioca), dirigiu-se até ao local do jogo, e resolveu acabar com a brincadeira dando uma bela flechada na bola, com uma ponta de metal (ponta usada em animais maiores). Eu não sei o que passou na mente do Xina naquele instante. Será que ele pensou que fosse um mamão ou então algum bicho correndo na pista e todo mundo atrás dele tentando pegá-lo? Sei lá.  Só sei que Xina conseguiu acabar com a alegria da galera. Um camarada veio triste me entregar a bola murcha relatando o episódio. Após ouvir atentamente a história, falei que se eles quisessem continuar jogando bola, o autor da flechada teria que dar o pagamento da mesma, para que outra pudesse ser providenciada. Numa viagem seguinte levei comigo outra bola nova, que só foi liberada após a negociata.
Bastou mostrar a bola reluzente para os jovens, que já não jogavam por um bom período, para ficarem atiçados e fazerem pressão para o Xina acertar as contas comigo. Não demorou muito para que ele usasse novamente a sua flecha para o alvo certo, trazendo-me a metade de uma cutia. O negócio foi fechado!
Coitada da cutia, que não teve nada a ver com a história, acabou pagando o pato, pois o “xôko” não pode parar!

Curt Kirsch

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